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Resenha do livro Uma Breve História do Infinito. Dos Paradoxos de Zenão ao Universo Quântico de Richard Morris, Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges, Jorge Zahar Editor, 1998.

No romance Os irmãos Karamazov, escrito por Dostoievski, há uma passagem em que Ivan Karamazov tem a alucinação da visita de Satanás, durante a qual este lhe expõe a antiga teoria dos ciclos cósmicos: "A Terra foi destruída e recriada pelo menos um bilhão de vezes. Além disso, o processo vai se repetir infinitamente e sempre da mesma maneira". Este relato é parte da erudição que brota do recente livro de Richard Morris, no qual ele aborda o surgimento e a evolução de conceitos referentes ao infinito, desde o paradoxo de Aquiles e a Tartaruga, concebido pelo filósofo grego Zenão em meados do século V a.C., até as modernas teorias cosmológicas. Da literatura contemporânea Morris extrai um trecho do conto A biblioteca de Babel, de Jorge Luis Borges. O grande escritor argentino parece ter antecipado os cosmólogos atuais ao especular que o universo, composto de um número indefinido e talvez infinito de galáxias hexagonais, é uma esfera cujo centro exato é qualquer de seus hexágonos e cuja circunferência é inacessível. Sendo ilimitada e cíclica, essa biblioteca (segundo Borges, nome que alguns dão ao universo) poderia ser substituída por um único livro contendo um número infinito de páginas infinitamente finas.

Se o leitor superar as duas primeiras páginas, vai se deparar com um belo texto de divulgação científica. Nessas páginas iniciais o autor apresenta uma alegoria em torno de um jogador de beisebol que morre e vai para o céu. Para discutir as implicações da ordem Divina permitindo que o jogador possa participar de um número infinito de jogos, o autor impõe ao leitor brasileiro, em geral ignorante das regras do beisebol, um breve e intenso sacrifício.

Ao folhear o livro me vi tomado por uma sensação preconceituosa. Um texto com pouco mais de 200 páginas, indo da tartaruga de Zenão ao zoológico celestial, haveria de ser encarado com alguma reserva. Textos de divulgação científica trazem-me à memória aquela anedota do sujeito que, como pianista era ótimo matemático. Um texto de divulgação científica conceitualmente equivocado pode causar sérios danos ao nível cultural do grande público. Felizmente não é este o caso do presente livro. Todavia, embora conceitualmente correto, o trabalho de Morris é claramente destinado aos neófitos em física, astronomia e matemática. Além do mais, e felizmente sem grandes prejuízos, o livro cai na armadilha da simplificação, uma conseqüência inevitável da extensão do tema abordado.

Da filosofia para a literatura, da preocupação conceitual para a vulgarização verbal, os conceitos de infinito e infinidade passaram por estágios operacionais importantíssimos na física e na matemática. Desde Zenão, um dos primeiros a fazer uso da idéia de infinidade, mais de dois milênios foram necessários até que, por volta de 1880, George Cantor mostrou que a infinidade podia ter um rigoroso tratamento matemático. Todavia, suas importantes contribuições, incluindo o conceito de números transfinitos, não tiveram aceitação imediata entre os matemáticos. Muitos deles queriam evitar o uso do conceito de infinidade, e ali estava Cantor falando de um número infinito de infinidades. A rejeição por parte de cientistas importantes, entre os quais Henri Poincaré, provocou efeitos emocionais irreparáveis no famoso matemático alemão, levando-o à morte num hospital psiquiátrico em 1918. Quase uma década depois da sua morte Cantor foi reabilitado por uma nova geração de matemáticos alemães, liderados por David Hilbert.

O conceito de infinito sempre teve relação muito forte com o conceito de tempo, conforme nos ensina Morris no capítulo 2. Todavia, é no debate sobre o universo que a idéia de infinidade tem emergido com maior pujança. Sábios medievais já discutiam a questão da natureza finita ou infinita do universo, principalmente no contexto aristotélico. Foi também nesse período que se deu o lento desenvolvimento da astronomia, que tinha pouca conexão com a cosmologia. Morris mostra, no capítulo 3, que o principal estímulo para seu estudo era o desejo de calcular horóscopos mais precisos. O salto qualitativo e revolucionário foi dado por Copérnico, com a publicação, em 1543, do seu livro Das revoluções dos orbes celeste, no qual expôs a teoria de que o Sol, e não a Terra, era o centro do sistema solar. De Copérnico a Stephen Hawking, passando por Galileu, Newton, Giordano Bruno, Tycho Brahe e Kepler, a história da astronomia e da cosmologia é repleta de geniais personagens e maravilhosas descobertas, tema ao qual Morris dedica quase a terça parte do livro.

O primeiro passo para a operacionalização do conceito de infinito na física foi dado por Galileu. Ao analisar a velocidade de um corpo em queda, ele definiu velocidade instantânea como a "velocidade média" calculada quando o corpo percorre uma distância infinitamente pequena num intervalo de tempo infinitamente pequeno. A definição estava correta, mas o método para calcular a velocidade instantânea só apareceu depois que Newton inventou o cálculo diferencial, alguns anos depois da morte de Galileu. Na linguagem newtoniana, a velocidade foi definida como a razão de duas quantidades tendentes a zero, dois infinitésimos. Mas, o que é um infinitésimo? Essa foi uma questão que incomodou várias gerações de matemáticos. Em 1784, a Academia de Ciências de Berlim ofereceu um prêmio para a melhor solução para o problema do infinito. Os matemáticos empregavam tanto o infinitamente vasto como o infinitamente pequeno, e ninguém sabia como era possível que tantos teoremas corretos fossem deduzidos de suposições tão contraditórias. De acordo com Morris, cerca de 23 artigos, a maioria versando sobre o cálculo e os infinitésimos, foram apresentados, mas a Academia não encontrou um que merecesse o prêmio.

Do infinitamente grande para o infinitamente pequeno, da imensidão cosmológica para o microcosmo atômico, os conceitos de infinito, infinidade e infinitésimo vêm permeando a física desde muito tempo. Nos capítulos 5 e 6 Morris aborda questões relacionadas com aquilo que hoje se denomina física moderna. A teoria clássica do eletromagnetismo, elaborada por Maxwell em 1865, foi a motivação para o desenvolvimento da teoria da relatividade restrita de Einstein. A quantização da energia proposta por Planck em 1900, e explorada por Einstein na explicação do efeito fotoelétrico em 1905, juntamente com os experimentos de Rutherford, entre 1908 e 1911, forneceram ao jovem Niels Bohr as ferramentas para o desenvolvimento do seu modelo atômico quantizado. Entre a formulação das equações de Maxwell e as propostas de Einstein para a cosmologia, foram 50 anos da mais extraordinária ebulição de idéias e descobertas científicas que a humanidade já testemunhou.

Os quatro capítulos seguintes (7-10) são dedicados às questões cosmológicas modernas, com direito às mais fantásticas especulações em torna da possibilidade de viagem no tempo. Entre tantas teorias e observações astronômicas, tão belas quanto complexas, uma chama a atenção porque permite uma alegoria de retorno ao início do livro. Refiro-me à discussão que Morris faz sobre a observação de buracos negros, os quais se formam quando a massa de uma estrela é comprimida num volume suficientemente pequeno, atingindo o limite determinado pelo raio de Schwarzschild. Todavia, como diz Morris, "à medida que a estrela se contrai e as forças gravitacionais aumentam, o tempo parece correr cada vez mais devagar. A superfície da estrela se aproxima do raio de Schwarzschild mais e mais lentamente. Ela nunca atinge o raio porque esse é o ponto em que o tempo pára por completo(...)". Veja o leitor se não tenho razão ao considerar o texto acima como a versão cosmológica do paradoxo de Zenão!



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