PRÁTICA INTERDISCIPLINAR  NA FORMAÇÃO DISCIPLINAR DE PROFESSORES DE CIÊNCIAS[1]
  (Interdisciplinary practice in the disciplinary formation of science teachers)

Maurício Pietrocola
Faculdade de Educação – USP
Av. da Universidade 308,
05508-900
São Paulo - SP
Mpietro@usp.br

José de Pinho Alves Filho
Departamento de Física – UFSC
CFM – campus trindade
88040-900 Florianópolis SC
Jopinho@fsc.ufsc.br

Terezinha de Fátima Pinheiro
Colégio de Aplicação - UFSC
Ccntro de educação - Campus trindade
88040-900 Florianópolis SC
tfpinheiro@ca.ufsc.br
 
 

Resumo

        A abordagem interdisciplinaridade  é hoje uma questão muito debatida no âmbito da educação. No entanto, os currículos e a formação docente permanecem ancoradas em paradigmas disciplinares. Este trabalho propõe-se a discutir a dicotomia disciplinar-interdiscplinar na perspecitva da formação de professores de ciências. Para isso, analisamos a aplicação numa discplina do curso de licenciatura em Física da metodologia de ensino interdisciplinar de Gerard Fourez, intitulada "Ilhas Interdisciplinares de Racionalidade".
Palavras-chave: intedisciplinaridade; formação de professores; ensino; física

Abstract

The interdisciplinary approach is today a subject very much discussed in the ambit of education. However, the curricula and the teacher preparation stay anchored in disciplinar paradigms. This work intends to discuss the relation between disciplinar and interdisciplinar approach in the perspective of the  science teachers formation. For that, we analyzed the application, in a subject of the physics teacher preparation course, of the methodology proposed by Gérard Fourez, entitled "  Interdisciplinar's Islands of Rationality ".
Key-words:  interdisciplinarity; teacher preparation; teaching; physics
 
 

Introdução

        A necessidade de tornar os conteúdos científicos escolares dotados de significado, bem como de discutir o papel das ciências e das tecnologias na sociedade contemporânea, tornou-se questão das mais importantes no cenário educacional das duas últimas décadas. (Fourez, 2002) [2]

        A introdução da abordagem interdiciplinar se justificaria, para muitos, a partir da constatação de que o ensino disciplinar tem levado a impasses quando se leva em consideração a educação para a cidadania e não apenas a educação propedêutica.(Macedo e Campos, 2000) Para os críticos, o enfoque disciplinar dos currículos não propicia que os conhecimentos aprendidos na escola tenham efetividade fora dela, pois estão demasiadamente marcados por idealizações, simplificações e restrições que os tornam impotentes para lidarem com a diversidade e complexidade do mundo.
Mais recentemente, encontramos nos PCNs de Ciências (em particular na parte destinada ao Ensino Médio) menção explícita às características das abordagens disciplinar e intedisciplinar no ensino de ciências.
 “No nível médio, esses objetivos [habilidades, competências e os valores desenvolvidos na área] envolvem, de um lado, o aprofundamento dos saberes disciplinares em Biologia, Física, Química e Matemática, com procedimentos científicos pertinentes aos seus objetos de estudo, com metas formativas particulares, até mesmo com tratamentos didáticos específicos. De outro lado, envolvem a articulação interdisciplinar desses saberes, propiciada por várias circunstâncias, dentre as quais se destacam os conteúdos tecnológicos e práticos, já presentes junto a cada disciplina, mas particularmente apropriados para serem tratados desde uma perspectiva integradora”[3] . Brasil, 1999, Pag 6)
       Particularmente a Física escolar tem sofrido a crítica constante de não ser capaz de apreender o mundo cotidiano dos estudantes. A vertente metodológica que se denominou “Física do cotidiano”, fundamentada teoricamente em trabalhos de corrente freiriana (Gref. 1993), reinvidica um ensino com maior concessão ao mundo real e em detrimento do mundo teórico-conceitual.

        Embora seja fácil constatar que o ensino disciplinar tradicional tem sido  incapaz de abarcar a diversidade do mundo, as alternativas não-disciplinares trazem consigo outros problemas, especialmente a dificuldade em se lidar com situações não delimitadas por fronteiras epistemológicas bem definidas. A realidade se apresenta como algo complexo e somente apreendido às custas de processos de simplificação e idealização produzidas no interior das teorias. Isto termina por diferenciar de maneira acentuada a diferença entre os objetos presentes no interior das teorias e aqueles acessíveis no cotidiano. Esta diferença pode ser tanto maior quanto mais sofisticadas forem as terorias científicas propostas. Para penetramos a essência do mundo físico, por exemplo, é preciso realizar um grande esforço de imaginação guiado por suas teorias. Acaba-se por conviver com objetos que têm sua existência condicionada ao aceite das teorias. Neste processo, é inevitável um certo distanciamento do mundo imediato, objetivando a integração com um mundo supostamente para além das aparências. Um mundo de essências onde apenas a mente imaginativa e bem treinada nas teorias pode alcançar. Tem-se uma abordagem eminentemente disciplinar, onde o mundo cotidiano é sacrificado em prol de um mundo conceitual atrelado às teorias.
Mas existe uma outra forma de interação com o mundo.  No lugar de transformar os objetos do mundo de forma a integrá-los às teorias, é possível proceder de forma inversa, ou seja, submeter os conhecimentos disponíveis a projetos de ação sobre o  mundo. Neste último processo, as teorizações produzidas são limitadas em prol de representações menos idealizadas e mais realistas. Se no interior do conhecimento disciplinar constrói-se representações teóricas às custas de limitações do mundo cotidiano, no conhecimento prático procede-se de forma inversa, limitando-se o potencial dos conhecimentos teóricos em prol de representações mais fidedignas ao mundo cotidiano. É desta forma que procedem a maioria dos detentores de conhecimentos práticos como os engenheiros, farmacêuticos, médicos e outros profissionais que não podem (e não devem) produzir idealizações excessivas sobre o domínio do mundo com o qual lidam (os artefatos tecnológicos, os medicamentos e os doentes). O conhecimento encerrado por estes especialistas não é do mesmo tipo daqueles presentes nas teorias físicas.
Segundo Fourez (1994), os conhecimentos do primeiro tipo são ditos conhecimentos disciplinares e os segundos conhecimentos por projeto. Em geral, o conhecimento por projeto não é estável, nem exato e é tributário do contexto no qual está inserido. Ele deve se amoldar às situações variáveis impostas pelas condições no qual se inseri. Um mesmo projeto desenvolvido num mesmo lugar por grupos diferentes produzirá resultados diferentes. O mesmo acontece com o projeto de um mesmo grupo desenvolvido em contextos diferentes. Na realização de um projeto muitos conhecimentos são requeridos para sua plena conclusão. Por isto, a maioria dos projetos práticos requer uma abordagem multidisciplinar e as representações produzidas no seu interior se revestem de um caráter interdisciplinar. De nada valerá um conhecimento disciplinar que produza uma representação idealizada muito estável e exata de uma situação sobre a qual deseja-se agir. Esta representação não terá nenhuma serventia no mundo prático, onde as representações devem permitir ações efcientes! Grande parte das necessidades das pessoas no cotidiano é revestida deste caráter prático. Elas precisam produzir representações capazes de lidar com necessidades. Tais representações são na maioria dos casos representações interdisciplinares do mundo.
Tradição disciplinar no ensino de Física

        A organização e desenvolvimento dos conhecimentos na sociedade ocidental se desenvolveu através da formação e manutenção crescente de comunidades de especialistas. A existência de parâmetros estáveis, que regulam a atuação dos membros de tais comunidades e os conhecimentos por ele produzidos, permite que tais comunidades sejam vistas como áreas maduras de conhecimento, detentoras do que Kuhn incialmente definiu como paradigma (Kuhn, 1995,)[4] .  De maneira mais geral, podemos dizer que o conhecimento em geral, e o científico em particular, se estrutura através de disciplinas bem definidas, contendo conhecimentos estáveis. A Física, a Química, a Biologia e a Matemática são formas de conhecimento  disciplinar sistematizado por grupos de especialistas que partilham linguagem, enfoque, objetos e métodos de pesquisa comuns.
O currículo escolar também se organiza através de disciplinas, que guardam uma forte relação com as área de referência no domínio dos especialistas. Grosso modo, comungam dos mesmos valores, dos mesmos conteúdos e dos mesmos métodos das áreas de referência, além de serem demasiadamente estáveis quando comparadas às outras disciplinas escolares. Conteúdos, estratégias de ensino, avaliações e outros elementos presentes no interior das disciplinas científicas escolares modificam-se pouco e tendem a se perenizar ao longo dos anos. A Física, a Matemática e a Química são as que possuem maior estabilidade de programas curriculares. A Bilologia é um pouco mais volátil em termos de seus conteúdos (Fourez, 1994). Essas características também podem ser entendidas face à estabilidade presente nas próprias áreas de conhecimento. A instalidade curricular da Biologia escolar é tributária de recentes desenvolvimentos na área científica nas últimas décadas muito mais do que de decisões na esfera da educação.

        É interessante notar que, para muitos, a estruturação eminentemente disciplinar  dos currículos escolares advém de sua natureza epistemológica. A organização do saber científico escolar em disciplinas se constituiria em forma canônica de se produzir conhecimento e, por conseguinte, induziria um currículo escolar estruturado disciplinarmente. Nesse particular, vários autores já haviam apontado que as disciplinas escolares não se reduzem ao domínio do saber de refência (Santos, 1989; Chevalard, 1991; Astolfi e Develay,1995; Goodson, 1997). No entanto, cabe frisar que mesmo se as disciplinas escolares não se reduzem ao saber de referência, mantém com eles uma grande semelhança.

        Recentemente, a estruturação dos currículos em disciplinas tem recebido diversas críticas, em particular por ser responsável por uma educação sem compromissos com objetivos sociais imediatos ao exercício da cidadania. Surge no bojo dessa discussão, uma demanda por transformar os conhecimentos escolares em instrumentos dos objetivos sociais presentes na atualidade e que não estariam sendo contemplados pelas disciplinas. (Macedo e Campos, 2000) Em particular, a discussão sobre o significado do conhecimento escolar para a vida cotidiana dos alunos parece induzir a pensar que a eleição das disciplinas como base do currículo, estaria na base de uma educação sem significação para a formação do cidadão. Isso pode ser percebido no texto dos Parâmetros Curriculares Nacionais, que ao definir, na área de ciências por exemplo, a Física do cotidiano, aponta para objetivos que estariam para além das fronteiras da disciplina científica strito senso. Segundo esta perspectiva, a Física escolar deveria ser capaz de articular seu discurso sobre os fenômenos tecnonaturais presentes no dia a dia dos indivíduos. Este tipo de discurso aparece de forma clara no capítulo destinado ao Ensino de Física dos PCNEM.
"O ensino de Física tem-se realizado freqüentemente mediante a apresentação de conceitos, leis e fórmulas, de forma desarticulada, distanciados do mundo vivido pelos alunos e professores e não só, mas também por isso, vazio de significado. Privilegia a teoria e a abstração, desde o primeiro momento, em detrimento de um desenvolvimento gradual de abstração que, pelo menos, parta da prática e de exemplos concretos. (....) Insiste na solução de exercícios repetitivos, pretendendo que o aprendizado ocorra pela automatização ou memorização e não pela construção do conhecimento através de competências adquiridas."(Brasil, 1999, pag. 32).

        A estrutura disciplinar da Física escolar é fruto de uma tradição histórica construída ao longo do tempo. A estrutura organizacional do discurso científico didatizado que se estabelece com a literatura pedagógica vai excluindo gradativamente elementos "estranhos" às teorias. A exclusão de relações e correlações mais próximas com o cotidiano do leitor tornam-se cada vez mais acentuada e com o passar do tempo, este corpo teórico demonstra uma aparência quase que totalmente desligada de sua realidade original. Bachelard afirmava, já em 1938, o mesmo nos seguintes termos:

        “Os livros de Física, que há meio século, são cuidadosamente copiados uns dos outros, fornecem aos alunos uma ciência socializada, imóvel, que, graças à estranha persistência do programa dos exames universitários, chega a passar como natural; mas não é; já não é natural. Já não é a ciênia da rua e do campo...peguem um livro científico do século XVII e vejam como ele está inserido na vida cotidiana. O autor dialoga com o leitor como um conferencista. Adota o interesse e as preocupações naturais...Peguem um livro de ensino científico moderno:apresenta a ciência como ligada a uma teoria geral. Seu caráter orgânico é tão evidente que será difícil pular algum capítulo. Passadas as primeiras páginas, já não resta lugar para o senso comum; nem se ouvem perguntas do leitoir... O livro comanda.” (Bachelard, 1938, apud Nascimento, 2003)

       Se fizermos uso da Transposição Didática (Chevallard, 1991) como instrumento de análise dos conteúdos ensinados, fica clara a existência de um processo transformador que, de certa forma, já se manifesta entre o processo de construção do conhecimento pelo cientista e seu discurso de divulgação aos pares. Esse processo transformador não se esgota na etapa de divulgação, mas se faz presente quando o conhecimento científico é transposto ao ambiente de ensino. A estrutura conceitual é desmontada e re-ordenada seguindo uma sequência linear de complexidade crescente. (Robilotta, 1985). Muitos elementos anteriormente presentes na estrutura original do conhecimento são perdidos nessa reorganizam conceitual. No caso da Física, a dimensão fenomenológica e conceitual é minimizada, ao mesmo tempo que os aspectos mais quantitativos tornam-se majoritários. Rompe-se, dessa forma, um equilíbrio frágil entre teoria e realidade, tornando o conhecimento físico escolar desconectado do mundo (Pietrocola, 2001).

        Em suma, o discurso pedagógico oferece um conhecimento desvinculado de uma realidade próxima ao estudante, insinuando uma forma de pensar inusitada, tributária do contexto disciplinar. Os problemas propostos como exercícios, as atividades desenvolvidas nos laboratórios didáticos, os textos utilizados e outros materiais instrucionais se prendem à especificidade do disciplinar, não oferecendo correlações com o mundo real, contribuindo para um currículo com ênfase conteudista (Moreira e Axt, 1991).

       Não é leviano afirmar que as estruturas curriculares se valem dos livros didáticos para se organizarem. A opção de tal ou tal livro didático determinará, a principio, a constituição das disciplinas que assumem seu espaço curricular, demarcado pelo tempo (número de aulas) e profundidade. Mesmo que o discurso didático do professor seja amplo, abrangente e propicie contextualizações, em geral, ele fará uso de exercícios e problemas do livro didático e sua avaliação terá como base a literatura disciplinar do livro adotado.

        É importante lembrar que os livros didáticos dirigidos ao Ensino Médio refletem o mesmo enfoque disciplinar presente no meio universitário, levando os professores a consolidarem, na sua prática pedagógica, o estilo reprodutivista e disciplinar adquirido em sua formação. Mesmo os grandes movimentos inovadores no ensino de Ciências ocorridos no passado, também transmitiram este mesmo espírito disciplinar,  com grande valorização do conteúdo. Apenas para situar, podemos citar o PSSC (Physical Science Studies Commitee) , o Harvard, o Nuffield e o Projeto Piloto da Unesco, dentre os estrangeiros, e o, FAI (Física auto-Instrutiva), o PEF (Projeto de Ensino de Física) e o PBEF (Projeto Brasileiro de Ensino de Física) , dentre os nacionais. Todos tiveram  nos conteúdos disciplinares o eixo articulador  do ensino com muito pouco compromisso com objetivos pessoais dos alunos e questões sociais mais amplas. O projeto Harvard exercita uma certa interdisciplinaridade ao fazer uso da abordagem histórica. Embora valorize a história internalista da evolução de conceitos, o  momento histórico indicava a ciência como certificação do saber e instrumento de desenvolvimento econômico e soberania nacional. Neste contexto, a formação de profissionais para os quadros da área científica parecia prioridade sobre a perspectiva da formação geral do cidadão. No entanto, é importante registrar que essa concepção de ensino consolida a ênfase disciplinar do ensino de Física, cristalizada ainda hoje nos diferentes livros didáticos brasileiros e nos cursos de Física em geral.

        Os currículos de Física dos cursos de graduação também colaboram para a manutenção do conhecimento físico ensinado nos moldes ditados internamente pelas disciplinas.

        Segundo, Pinho-Alves (1990, pag. 223) :

        "... (o currículo de graduação de Física da UFSC) se caracteriza como um currículo predominantemente conteudista e, por conseqüência, de orientação pedagógica reprodutivista e politicamente conservador."

        Certamente este indicador pode ser estendido, sem muitas ressalvas, a maioria dos cursos de formação de professores de Física e para a maioria das licenciaturas em ciências. O peso de uma tradição disciplinar, historicamente constituída, se impõe fortemente aos currículos dos cursos universitários, entre outros motivos, pela sua proximidade (mesmo que virtual) com as comunidades de produtores de conhecimento.

       A ênfase dos cursos de formação docente é dada aos conteúdos disciplinares. Tendo em vista a formação do cidadão, como apontado atualmente nos PCNs, essa opção é discutível e mesmo questionável. No entanto, esse tipo de curso tem produzido, em conformidade com os objetivos pretendidos, licenciados com sólida formação em conteúdo. No final do processo de formação, tem-se licenciados capazes de reproduzir parte significativa daquilo que é considerado importante no interior da disciplina. A formação do futuro professor de Física engloba uma estrutura linear montada sob a égide da complexidade conceitual e do formalismo matemático, das técnicas padrões de resolução de problemas, das práticas experimentais fechadas (em menor intensidade), entre outras. Isso imprime uma maneira de pensar e enfrentar problemas muito particular e restritiva, que inibe a inclusão de enfoques que não sejam aqueles determinados pelo paradigma da área, caracterizando o pensamento disciplinar. Este resultado gera um sentimento de "dever cumprido" nos formadores (docentes universitários) que acaba retro-alimentando continuamente o sistema e colaborando para perpetuá-lo
Atualmente, as aspirações educacionais no Ensino Médio são mais abrangentes e se faz presente uma necessidade de legitimidade extra-escolar ao conhecimento ensinado. Nesse contexto, a formação do indivíduo e o pleno exercício da cidadania passam a constituir parte importante do discurso pedagógico atual, havendo a necessidade de questionar aspectos do currículo das licenciaturas. A proposição de um currículo escolar que pudesse integrar de forma balanceada enfoques disciplinares e interdisciplinares esbarra em dificuldades de ordem estrutural – pois os currículos de formação de professores e aqueles do Ensino Médio mantém, em geral, uma estruturação eminentemente disciplinar (Goodsson, 1997).
A dificuldade de trabalhar com metodologias ou técnicas interdisciplinares, em qualquer grau de ensino, tem parte de suas raízes na formação disciplinar dos professores. Mesmo se houve avanços, com um maior destaque para o campo educacional e da prática pedagógica em si, a base dos currículos dos cursos de formação de professores de Física é pautada em conteúdos eleitos entre aqueles exemplares da área.  A importância determinada por uma tradição se não impede, limita em muito as incursões dos cursos de licenciatura para além dos limites traçados pela disciplina. Não há incentivo ao licenciando (futuro professor) em analisar aspectos do conhecimento num contexto social mais amplo.

        Balancear a formação disciplinar dos docentes não implica necessariamente em explodir a estrutura curricular disciplinar. Muitas vezes, ações pedagógicas pontuais podem diminuir o apelo disciplinar do pensamento dos futuros professores. Para Fourez, bastaria que se oportunizasse atividades interdisciplinares nos currículos disciplinares da escola, de modo que os alunos (da Educação Básica) tivessem oportunidade de, pelo menos uma vez na vida, se deparem com o que ele define como conhecimento por projetos (Fourez, 1993, 1994, 2002). Isto lhes capacitaria e desenvolver representações interdisciplinares que integrassem conhecimentos de diversas áreas disciplinares, de forma a ganhar autonomia na seleção e uso do conhecimento em diversas situações reais. Os professores deveriam, então, ser capazes de implementar atividades de cunho interdisciplinares. Mas isto pressupõe espaço no currículo das licenciaturas para discutir, preparar, aplicar e avaliar tais atividades.

As Ilhas Interdisciplinares de Racionalidade na formação de licenciados em Física

        Face ao contexto fortemente disciplinar instalado no universo escolar, é ilusório esperar que práticas interdisciplinares possam, espontaneamente, fazer parte do cotidiano de um professor de Física do Ensino Médio. Os professores sentem-se desconfortáveis fora dos limites estritos da área disciplinar na qual aprenderam a se deslocar em consequência de sua formação tradicional. Existe, por parte de alguns deles, consciência de que a abordagem interdisciplinar oferece ganho de significado para os alunos. Analisar situações tiradas do cotidiano apresenta dificuldades de ordem conceitual, metodológica, práticas e didáticas e exige que se ultrapasse as fronteiras seguras do conhecimento disciplinar que eles detém. A inexistência de contrapontos teóricos e práticos, que pudessem compensar a forte ênfase disciplinar obtida ao longo de sua formação, torna as práticas interdisciplinares uma aventura perigosa e evitada pelos professores de Física. Desta forma, em geral, o conhecimento por projetos é pouco enfatizado e exercitado no contexto escolar.

        O que iremos apresentar a seguir é um estudo de caso, concernindo a introdução de uma prática interdisciplinar no interior de uma disciplina obrigatória do curso de licenciatura em Física. O objetivo da pesquisa foi avaliar a possibilidade de se criar um espaço para reflexão sobre a interdisciplinaridade no contexto de uma formação disciplinar. Além disto, foi também foco do estudo analisar a potencialidade de implementação da prática interdisciplinar em questão no Ensino Médio.
A metodologia para coleta de dados e informações utilizadas na pesquisa foi do tipo participativa, pois um dos pesquisadores por ela responsável era também o professor da disciplina Instrumentação. Além dele, dois outros pesquisadores ( A e B), ambos passivos, estiveram presentes nas 9 aulas visando observar e produzir anotações sobre os acontecimentos. Nesse sentido, a pesquisa se caracterizou também como etnográfica.  Ao final da aplicação, alguns licenciandos foram entrevistados por um dos pesquisadores (B) passivos no processo. Além disso, a própria elaboração do exercício previa a existência de um livro de Atas, a ser preenchido pelos próprios licenciandos[5]. As conclusões tiradas foram tributárias destas quatro fontes de dados. Neste sentido, a pesquisa caracterizou-se como iluminativa, pois não se valeu de apenas uma fonte de dados.

        A  função do pesquisador A foi registrar o comportamento do grupo nas diferentes etapas e tarefas, a participação individual, a contribuição de cada aluno, o "trânsito interdisciplinar" dos alunos e, principalmente, observar o comportamento do Professor da disciplina em relação a sua interferência nos diferentes momentos  e etapas do processo, etc. Estas observações foram registradas para  estabelecer-se  procedimentos de rotina em futuros exercícios e instrumentos de observação/avaliação para os professores quando da aplicação sozinhos em sala de aula.
A prática baseou-se no desenvolvimento de projetos segundo a metodologia da construção de Ilhas Interdisciplinares de Racionalidade (IIR) proposta por Fourez (1993, 1994). Esta metodologia se inseri na perspectiva da Alfabetização Científica e Técnica, que se caracteriza pela capacidade do indivíduo em compreender e/ou inventar representações teóricas sobre problemas. Os problemas se inserem dentro de contextos multifacetados, com várias abordagens possíveis. As representações teóricas produzidas nesse contexto são, por princípio, interdisciplinares, pois não é possível que um problema verdadeiro seja absorvido por uma única disciplina sem perda de significado. Construir uma ilhota interdisciplinar de racionalidade é, desta forma, inventar uma modelização adequada de uma situação, de modo que seja possível comunicar ou agir sobre o assunto tratado. As IIR são subordinados aos conhecimentos provenientes de diversas disciplinas e de saberes da vida cotidiana. A eficiência e o valor de uma IIR dependem da capacidade dela fornecer uma representação que contribua para a solução do problema a que se propôs.

      Ao se construir uma IIR surgirão questões específicas ligadas à conhecimentos determinados, que poderão ou não ser respondidas, conforme a orientação do projeto. O domínio desconhecido ao qual estas questões estão relacionadas é denominado caixas pretas[6].  A decisão de abrir ou não estas caixas, ou seja, de aprofundar ou não determinado conhecimento, cabe à equipe executora, que pode ser constituída por profissionais de uma empresa, um grupo de professores de uma escola, grupo de alunos e professores – ou um indivíduo. A abertura de caixas-pretas significa a construção de modelos, geralmente disciplinares, que contribuam para a explicação de algum aspecto da situação-problema enfocada.

        Ao utilizar problemas do cotidiano como fio condutor ao trabalho de teorização, fica determinada uma transposição que não tem o conhecimento disciplinar como referência exclusiva. Os critérios sobre o corpo de conhecimento a ser trabalhado  são  determinados no interior do projeto e devem satisfazer às seguintes questões: para o que e para quem ele se destina. O projeto e o contexto ficam claramente definidos quando a situação para a qual se deseja construir uma representação seja expressa por meio de uma questão ou da descrição da situação.

          O desenvolvimento de práticas interdisciplinares em sala de aula se realiza por intermédio de etapas. Segundo Santomé (1998), essas etapas não são rígidas. No entanto, elas  cumprem objetivos básicos, descritos por Klein, (apud Santomé 1998), como: definição do problema; estudos e pesquisas a serem empreendidos; avaliação, adequação e relevância das respostas obtidas.

        Para o desenvolvimento da metodologia das IIR, cria-se um contexto problemático. No desenvolvimento das IIR, os estudantes são tomados como membros de uma “equipe de projetos”. Fourez propõe inicialmente oito etapas para o desenvolvimento de uma IIR. A primeira delas, denominada clichê, é constituída pelo levantamento de perguntas que a equipe tem a respeito da situação-problema. O refinamento das questões levantadas, a definição do caminho para buscar as respostas, a definição dos participantes e o levantamento de normas e restrições relativas ao problema, se dá no panorama espontâneo, que é a segunda etapa. A partir das decisões tomadas, a terceira etapa (consulta aos especialistas) é realizar a consulta a pessoas que possam auxiliar a responder as dúvidas da equipe. No quarto passo, a abertura de equipamentos, visitas a locais que tenham relação com a situação, permite que o grupo deixe de pensar apenas teoricamente, indo à prática. Com o amadurecimento das questões que devem ser respondidas para resolver a situação, o grupo passa para a etapa seguinte, que corresponde ao momento dos conteúdos, da abertura aprofundada de algumas caixas-pretas, para buscar princípios disciplinares, onde especialistas externos ao grupo podem ser convidados a assessorá-lo. Um momento de avaliação parcial do trabalho, ocorre na sexta etapa, na qual o grupo realiza uma esquematização da situação, buscando verificar os avanços e a correções necessárias. Isto propicia que a equipe possa então dar o passo seguinte, que é avaliar a sua capacidade de autonomia pela possibilidade de abertura de caixas pretas sem consulta a especialistas. Realizadas as correções necessárias, a equipe passa à elaboração da síntese da ilha de racionalidade, por meio da qual é apresentado o resultado da atividade, na forma de um texto, cartaz, vídeo, software, relatório ou outro produto qualquer, contemplando o problema proposto na primeira etapa[7].

        As etapas permitem que o trabalho vá sendo delimitado ao longo do processo e que atinja um resultado final dentro dos contornos pré-definidos, pois por sua própria natureza, os projetos tendem a ser demasiadamente abertos e amplos. Outro ponto importante a ser destacado, é que um produto deve estar sempre associado à situação-problemática proposta. Desta forma, tem-se um contexto que limita as ações a serem empreendidas no interior do projeto. O tipo de produto deve estar muito claro no início do projeto, de modo a evitar que este se torne tão abrangente que não seja possível conclui-lo. As etapas, embora apresentadas de maneira linear, são flexíveis e abertas. Em alguns casos podem ser suprimidas, ampliadas e revisitadas.

O exercício interdisciplinar

        Como cabe a uma metodologia do tipo etnográfica, iremos apresentar a descrição do exercício entre-cortada por comentários oriundos da vivência do pesquisadores em meio à atividade e aos relatos feitos pelos próprios alunos no livro de Atas. A análise dos dados obtidos das entrevistas com alguns alunos será feita preferencialmente no item Considerações Finais e Conclusões.

        O estudo foi feito com um grupo de 13 licenciandos em Física do sétimo semestre da Universidade Federal de Santa Catarina, durante um mês (9 aulas de 100 minutos) na disciplina “Instrumentação para o Ensino de Física B”[8] . O programa dessa disciplina previa a elaboração e desenvolvimento de projetos. Mas em geral, os projetos trabalhados em anos anteriores eram de natureza temática e fortemente marcados por uma  ênfase disciplinar. Ou seja, o exercício proposto se colocava na perspectiva de quebra de uma tradição. Num ano anterior, no contexto da disciplina Instrumentação para o Ensino de Física, tentou-se a aplicação de outro projeto que se pretendia interdisciplinar. No entanto, a falta de clareza do contexto no qual o projeto iria se desenvolver prejudicou o desenvolvimento do mesmo, que acabou se transformando num projeto temático disciplinar, limitando-se quase que exclusivamente a uma abordagem física[9] .

        Desta forma, a preparação prévia da atividade de IIR foi feita com muito cuidado para que a atividade pudese atender às exigências do contexto pedagógico. Mereceu especial atenção a definição da situação-problema que seria origem do projeto. Buscou-se um problema passível de ser desenvolvido no período de tempo definido e com os recursos disponíveis dentro da Universidade (Biblioteca, especialistas de outras áreas, laboratórios, computadores, acesso internet, etc) e que ainda assim pudesse ser recebido pelos estudantes como possível e verdadeiro[10] .

        Além disso, era importante que os alunos entendessem o contexto diferenciado no qual se desenvolveria a atividade. Para isso, os alunos leram e discutiram previamente o artigo "As Ilhas de Racionalidade e o saber significativo: o ensino de ciências através de projetos" (Pietrocola et al., 2000). A discussão foi direcionada para a dicotomia “disciplinar X interdisciplinar” e para a viabilidade de execução da metodologia proposta no artigo, tanto do ponto de vista geral, como no contexto da disciplina Física no Ensino Médio.

        De maneira geral a proposta das IIR contida no artigo foi bem aceita pela turma e considerada factível a priori. Apenas foram feitas ressalvas relativas aos programas a serem cumpridos, ao fato dos planejamentos escolares serem muito fechados e com pouca flexibilidade, etc., mas que não chegavam a invalidar a experiência. Esperou-se que a discussão teórica sobre interdisciplinaridade servisse de divisor em relação ao que normalmente acontecia em termos de atividades disciplinares. Ou seja, a discussão deveria servir de alerta aos estudantes para a novidade que se iniciaria a partir daquele momento.

        A aplicação do projeto propriamente dita iniciou-se com a leitura, pelo professor da disciplina no final de uma aula, de um oficio encaminhado por uma empresa (fictícia) solicitando os préstimos da turma para a solução de um problema (vide anexo 1). Nos momentos iniciais que seguiram a leitura do ofício, boa parte dos alunos não percebeu que se estava propondo uma situação fictícia. Com a leitura dos signatários do ofício isso ficou evidente[11] . A situação-problema presente no ofício era “a determinação da(s) causa(s) de 50 óbitos na Bolívia decorrentes de choques elétricos durante banho com chuveiros elétricos de várias marcas produzidos no Brasil.” Pedia-se para tanto, a confecção de um relatório técnico, na forma de uma apresentação oral a ser feita a representantes da empresa solicitante. O período para resolver o problema já estava contemplado no próprio enunciado do ofício, pois este informava que dentro de um mês o mesmo deveria estar pronto para ser apresentado à "Comissão da empresa”. As oito etapas sugeridas na metodologia foram seguidas.

        Foi acertado que se faria um “livro de Atas”, preenchido a cada encontro por um estudante (secretário) de forma a distribuir o trabalho. As “atas” não teriam a função de registrar em detalhes a participação de cada aluno ou descrever as discussões. Sua finalidade maior seria somente o registro das decisões acordadas ao final de cada etapa para evitar mal entendidos futuros, definir responsabilidades dos grupos ou ainda direcionar o rumo dos trabalhos. Este tipo de ata compacta evita a sobre-carga de trabalho do “secretário do dia” e possibilita a sua participação em todas as atividades, entretanto perde-se muito das discussões e manifestações dos demais alunos. No caso, o pesquisador A que observava o desenvolvimento da aula recuperava as discussões através de anotações.

        O objetivo da primeira etapa (Clichê) é solicitar aos alunos que manifestem idéias associadas à situação-problema, sem entretanto buscar justificativas ou entrar no mérito das mesmas. Espera-se uma “tempestade de idéias”  (brain storme) que garantisse uma primeira aproximação ao problema. "Nesta etapa é bom distinguir as idéias compartilhadas (definidas como fatos) e aquelas que são objeto de debates ("hipóteses ou suposições") ou julgamento de valor."(Pietrocola et al, 2000, pag. 112). Como resultado da tempestade de idéias foram anotadas no livro de Atas 37 hipóteses (vide anexo 2) que poderiam estar ligadas ao problema em questão (morte de bolivianos no manuseio de chuveiros brasileiros).

        Um cuidado tomado pelo professor foi desestimular a discussão sobre o mérito das hipóteses ou suposições apresentadas nesta etapa. Em geral, os alunos querem de imediato, após a proposição de uma suposição ou hipótese, iniciar um debate de valor sobre a mesma. Essa discussão deve ser prorrogada , preferencialmente, para a segunda etapa.
Na elaboração do panorama espontâneo, o clichê é revisto com possibilidades de ampliação ou redução das proposições apresentadas inicialmente, com base na discussão de valores anteriormente desestimulada pelo Professor. Espera-se que a aproximação preliminar e desfocada da primeira etapa pudesse ser precisada, inclusive com a exclusão e introdução de algumas hipóteses. Desta forma, foi inicialmente introduzida a hipótese 38 (ver anexo 2) que levantava a possível contaminação da água por radiação. Face a disponibilidade de tempo, o grupo decidiu na aula seguinte retirar esta hipótese, assim como, as de n° 2, 14, 16, 19, 20, 21, 22, por serem consideradas improváveis.

        Na proposição original de Fourez, o panorama espontâneo é subdividido em 6 passos(ver Fourez, 1993 e Pietrocola et al. 2000). Isto não foi feito explicitamente pelos alunos, que preferiram se concentrar na discussão das hipóteses. Isto acabou antecipando a listagem dos especialistas e especialidades envolvidas no problema, que deveria se constituir no último passo desta etapa. Os especilaistas listados foram os seguintes:

    Representantes da fábrica, Biofísico, Engenheiro Elétrico, Engenheiro Químico, Sociólogo, Geólogo, Médico.

    Ainda nesta etapa, a turma decidiu dividir o trabalho em blocos. As hipóteses remanescentes foram agrupadas em seis blocos, determinando a divisão do trabalho por equipes, cada uma com 2 alunos. Cada grupo atuaria como "especialista" responsável em aprofundar os assuntos e/ou procurar especialistas competentes para responder as questões levantadas. As equipes formadas foram:

    sócio/cultural - responsável pelos aspectos sociais, políticos, históricos e econômicos da Bolívia ( itens 4, 12, 23, 24, 27, 29, 33 da lista de hipóteses);

    biofísica - responsável por aspectos microscópicos ligados à influência de choque nas células (itens 8 e 37 da lista de hipóteses);

    jurídica - responsável por legislação, normas e representação das empresas fabricantes(itens 9, 11,18, 28 da lista de hipóteses);

    geologia/química - responsável pelos aspectos geológicos e geográficos da região e influências químicas ( 5, 6, 7, 10, 15, 29, 30, 35, 37);

    saúde - médicos (legista e cardiologista) que fazem investigação das mortes e efeitos de choque elétrico sobre o organismo (itens 7, 21, 37 da lista de hipóteses);

    engenharia - aspectos ligados à instalação elétrica e hidráulica e de componentes do chuveiro e das ligações (1, 3, 9, 11, 12, 13, 17, 18, 25, 26, 31, 33,34, 35, 36 da lista de hipóteses).

        O tipo de hipóteses/questões e o agrupamento proposto indicaram que os estudantes foram capazes de abordar a situação proposta no projeto de maneira multidisciplinar. As equipes sócio-cultural,  jurídica e de saúde, que representam metade do total, se definiram em função de temas bastante exteriores ao contexto disciplinar da Física. Os temas definidores das outras três equipes (Biofísica, Geologia/Química, Engenharia), embora mais próximos das disciplinas científicas, apresentaram uma dimensão aplicada inexistente no currículo de licenciatura ao qual os estudantes estavam submetidos. Isso garantiu que o projeto adquirisse de fato um caráter interdisciplinar. O grande temor do professor da Instrumentação era que o projeto acabasse se tornando temático e muito próximo ao domínio estrito da disciplina Física, como ocorrera na tentativa do semestre anterior. Porém, a escolha das hipóteses/questões a serem abordadas e a inexistência de uma equipe “Física” permite avaliar que os estudantes conseguiram um certo distanciamento disciplinar.

        A divisão do trabalho em equipes ainda na fase do panorama espontâneo constitui-se numa variante à proposição original de Fourez. Era esperado que os 4 passos seguintes, ou seja, a pesquisa das normas e condições impostas pela situação, a busca das tensões e jogos de interesse, listagem das caixas-pretas possíveis, e a lista de bifurcações permanecessem ainda sob tutela do grande grupo[12]. Mas isto não ocorreu. O professor aceitou a decisão do grupo e a atividade continuou através do trabalho das equipes, que relatavam seus avanços a cada encontro, com  o objetivo de partilhá-los com toda a turma. Isto acabou descaracterizando um pouco a metodologia originalmente proposta e a tomada de decisão acabou ficando restrita a cada equipe. A  listagem das caixas-pretas possíveis acabou sendo feita pelas equipes na forma de grandes temas:

        Saúde: problemas gerais do corpo humano: coração, idade, tipos de reações e outros.

        Biofísico: estudo dos fenômenos da vida pelos métodos físicos; busca de relações entre a pele dos bolivianos e a corrente elétrica nos choques elétricos.

        Jurídico: normas entre os países (Bolívia e Brasil); respeito ás normas; tipos de contratos;

        Sócio-cultural: relações econômicas e culturais; diferenciação entre zona rural e urbana da Bolívia.

        Geo-Químico: estudos dos solos, reservas minerais, lençol freático, reservatórios de água bolivianos; reações químicas e análise laboratorial da água e dos cosméticos.

        As equipes buscaram subsídios para melhor entender os grandes temas acima consultando livros, rede virtual internet, entrevistando professores de outras disciplinas (Química, Anatomia, Medicina Legal, Biofísica). Desta forma, eles puderam transformar os grandes temas em  caixas-pretas propriamente ditas. Abaixo transcrevemos a partir do livro de Atas a listagem das caixas-pretas:

Saúde:
1 Funcionamento do coração e afins
2 Funcionamento do pulmão
3 Fibras musculares e neurônios
4 Como o organismo reage aos choques?
5 Substâncias químicas no organismo.

Biofísica:
6 Pele x choque;
7 Eletrólise no organismo;
8 Resistência elétrica das células;
9 Condutibilidade dos cosméticos na pele.

Engenharia:
10 Instalação hidráulica;
11 Instalação elétrica
12 Funcionamento do chuveiro;
13 Aterramento.

Géo-química:
14 Análise e tratamento da água
15 Características geo-metereológicas
16 Cosméticos.

Sócio-cultural:
17 Situação econômica da Bolívia;
18 Sociedade e cultura boliviana;
19 Hábitos de higiene na Bolívia.

        É interessante notar que das 19 caixas-pretas propostas, apenas quatro (nº 10, 11, 12, 13) se enquadram de maneira parcial no domínio disciplinar da Física. A discussão sobre “aterramento” para se adequar à problemática definida pelo projeto, precisou ser estudada do ponto de vista das instalações residências e industriais, o que introduziu um elemento não-disciplinar importante. A modelização a ser elaborada nessa situação para se abarcar os problemas teve de incorporar aspectos exteriores às teorias físicas,  extrapolando aos limites da disciplina.

        A expectativa do grupo é que com a abertura das caixas-pretas acima, as hipóteses/questões levantadas no clichê pudessem ser resolvidas. Algumas equipes se adiantaram e forneceram algumas informações sobre as hipóteses/questões de sua competência. A Ata da terceira aula apresenta, por exemplo, a informação fornecida pela equipe sócio-cultural de que se deve “descartar a área rural (da Bolívia) por ser pouco desenvolvida...”. Além disso, eles relatam que “apenas 1/3 da população fala espanhol; a população é constituída por: 31,2% de mestiços, 25,4% quichuas, 16,9% Aimarás, 14,5% de brancos e 12% outros”. Um membro do grupo, não identificado nas atas, trouxe informações comparativas entre habitantes de regiões altas e baixas sobre características e metabolismo do corpo humano. “Pulmões e volume sangüíneo é maior (em habitantes de regiões altas) do que de pessoas das regiões mais baixas”.

        Estas informações obtidas pelo grupo demonstram que houve um envolvimento precoce dos estudantes com o espírito do projeto. A busca das informações acima não era uma tarefa prevista para a terceira aula.

        A quarta e a quinta aula foram destinadas a busca de respostas para as caixas-pretas acima listadas através dos meios disponíveis, em particular através da rede internet. Isto se configurou como as etapas 3 (consulta aos especialistas e especialidades), etapa 4  (indo à prática) e etapa 5 (abertura aprofundada das caixas-pretas ) da metodologia de IIR.
Uma das dificuldades de se desenvolver projetos nas escolas é que em geral os estudantes se deparam com problemas que demandam conhecimento por demais específicos e sofisticados. O fracasso desse tipo de atividade muitas vezes advém da impotência ressentida pelos estudantes frente a esse tipo de dificuldade A lista de hipóteses/questões elencados pelo grupo (anexo 2)  e as caixas-pretas a serem abertas demonstravam  esse tipo de dificuldade, porém os estudantes conseguiram abrir algumas delas com bastante profundidade. A equipe biofísica, dedicando-se a abertura da caixa-preta n°6 mostrou que “ a queratina serve como isolante elétrico da pele e o organismo adquire (absorve) queratina de duas formas: a) através da atividade física e b) através da alimentação, sendo que o genótipo em nada influência [a absorção]”[13]

        Grande parte das caixas-pretas foi aberta através da consulta a especialistas ou em pesquisa bibliográfica, gerando uma esquematização da situação pensada (etapa 6) e permitindo uma visualização do projeto. Os estudantes propuseram um diagrama onde as equipes e seus temas se encontravam unidos pelo situação-problema proposta. Percebendo a dificuldade em representar o projeto de maneira orgânica, o professor da disciplina interveio no processo, “perguntando se alguém teria alguma sugestão que remodelasse ou melhorasse o diagrama” . Apesar disto, o novo diagrama não apresentou avanços, permanecendo muito compartimentado em termos das disciplinas .

        A dificuldade dos alunos em sintetizar o projeto na forma de um diagrama[14] denota uma dificuldade em conceber representações interdisciplinares. Isto era previsível, uma vez que a tônica da formação por ele recebidas até aquele momento no curso de graduação esteve ligada às possibilidades e estratégias de representações no interior da disciplinas e não no  estabelecimento de conexões entre áreas de conhecimento.

        A aula sete foi destinada a continuação da abertura de caixas-pretas pelas equipes iniciada duas aulas antes. Desta forma, a etapa 7 (abertura de algumas caixas pretas sem ajuda de especialistas) acabou se confundindo com a etapa 5 (abertura de caixas-pretas para buscar princípios disciplinares). Este ponto mereceria maior destaque na discussão teórica da proposta de Fourez, pois não fica muito claro o que se deve esperar das atividades desenvolvidas em cada uma dessas etapas. Nossa interpretação é que, num contexto de Ensino Médio, a etapa 5 deveria ser destina à discussão de “princípios disciplinares“ por parte do(s) professor(es) responsável(is) pelo projeto. O professor teve dificuldade em reconduzir o grupo para discutir aspectos físicos levantados no decorrer do projeto, como seria o previsto originalmente para esta etapa. A tendência do grupo foi permanecer no “tom” multidisciplinar dado no início do projeto, gerando um superposição dessa etapa com a de número 7.
Como a proposição da situação-problema definia a apresentação de um relatório final em uma reunião com os "representantes da empresa", a turma decidiu que cada equipe faria uma apresentação dos resultados dos seu trabalho, na forma de cartazes e que um dos alunos faria a apresentação da solução final  apresentada à situação-problema. No dia da reunião final dois professores externos ao grupo e conhecedores da atividade de IIR  foram convidados a representar o papel de "representantes da empresa", para ouvir o relatório da turma e analisar a coerência e plausibilidade da solução apresentada. A conclusão do relatório apresentado pelo grupo, feito de maneira formal e séria, foi que a possível causa das mortes na Bolívia se devia a problemas de instalação do chuveiro, Isto por que, a baixa renda da população induziriam os próprios moradores a realizarem a tarefa, sem o devido preparo técnico para tanto[15] . O grupo supôs ainda que o manual de instalação que acompanha o aparelho era escrito em espanhol. Como 66% da população não domina correntemente este idioma (segundo dados obtidos pela equipe sócio-cultural), poderia haver problemas na interpretação do mesmo. Para resolver o problema sugeriram às indústrias que fornecessem o manual de instruções bilingüe (espanhol e a língua nativa).

Entrevistas
 

        Uma preocupação da pesquisa foi avaliar o tipo de impressão dos licenciandos para com a pertinência, aplicabilidade e desenvolvimento deste tipo de atividade, para eles-próprios e para futuras aplicações aos alunos do Ensino Médio.O pesquisador B[16]  realizou entrevistas procurando saber qual a impressão que os mesmos tiveram em relação ao exercício realizado. Os estudantes foram codificados como nome de partículas para manter o sigilo da pesquisa.

        A grande maioria destacou os méritos da proposta. O relato de um dos estudantes expressa os aportes da atividade em termos pessoais:

        “Ela (a atividade) é ótima, porque a gente acaba aprendendo muito, como de fato nós aprendemos; ela abre os horizontes, além de ter outros aspectos de socialização, do debate, fica uma coisa bastante dinâmica”. (Neutrino)

        O estudante demonstra ter percebido as mudanças suscitadas pela atividade e aponta aspectos importantes nessa mudança de postura.

        Outro estudante enfatiza sua avaliação sobre e exercício em termos de um ensino mais atraente. Como explicita, Elétron:
“É muito válida, mesmo porque é uma forma de tu ensinar Física sem os alunos perceberem que estão aprendendo Física...”

        O entusiasmo para com as possibilidades oferecidas pela nova atividade não impediu que os entrevistados manifestassem dúvidas sobre a aplicabilidade da proposta no contexto do ensino Médio:

        “Não pode ser aplicada de qualquer jeito, precisa de uma orientação adequada a cada situação...Segundo grau tem um nível, terceiro grau tem outro”.

        O entrevistado levanta um ponto importante, ao afirmar a diferença existente entre o Ensino Médio e o Ensino Superior e a necessidade de uma orientação adequada. Vale lembrar, no entanto, que a mudança de postura dos licenciados do estudo em questão não foi imediata e fácil de ser produzida. Muitos demoraram um certo tempo para entender e assumir seu novo papel na sala de aula. Isto pode ser verificado através das observações em sala de aula e no relato de alguns estudantes em entrevistas:

        “ Nas duas primeiras aulas eu pensei – bom o que eu estou fazendo aqui, qual é o objetivo disso....No final, achei bastante produtivo”. (Próton)

        De maneira geral, podemos afirmar que a participação dos estudantes foi positiva, no sentido de que a atividade transcorreu de maneira próxima ao esperado, sem grandes resistências em aceitar as condições impostas pelo novo Contrato Didático imposto à classe (Brousseau, 1982).

Conclusões
 

        Analisando a proposta metodológica da IIR, é necessário afirmar que o desenvolvimento da atividade em questão não seguiu fielmente as etapas proposta por Fourez. Logo na segunda etapa, os alunos introduziram a divisão de  trabalho por equipe que acabou por influenciar profundamente o restante da atividade.  Embora adaptações fossem indicadas como pertinentes pelo próprio autor e muitas vezes necessárias, é interessante procurar entender um pouco mais a opção feita pelos licenciandos.

        O grupo demonstrou uma certa ansiedade em iniciar as atividades mais objetivas e práticas e menos subjetivas e retóricas. A tendência dos licenciandos normalmente foi ser objetiva desde as primeiras etapas. Isto acabou prejudicando o  desenvolvimento do projeto, limitando a abordagem da situação-problema em toda sua generalidade. Isto ficou claro na fala dos estudantes entrevistados.

        "A ilha foi legal, mas a gente ficou muito tempo se embananando em coisas que não precisava.... Acho que uma semana e meia ou mais dava para ser tirado e colocado [na outra atividade da disciplina]....” (Neutron)

        A necessidade de romper com os “preâmbulos” e ir “direto ao ponto” parece advir da formação disciplinar a qual eles foram submetidos ao longo do curso de graduação. A tônica dos cursos de Física repousa, em geral, na idéia de que existem “estratégias” para a resolução dos problemas tratados e que parte da tarefa dos professores é apresentar algumas soluções “canônicas” a partir da discussão de exemplares e que o papel dos alunos é incorporar  e aplicar tais estratégias da maneira mais eficiente possível (Kuhn, 1995;, Zylberstajn, 1998). Os alunos se sentiram incomodados com a fase inicial da atividade (etapa 1 e etapa 2), pois ela se destina justamente a ampliar o entendimento do problema, em oposição ao que seria feito numa abordagem disciplinar. A omissão de alguns passos da etapa 2,  a divisão precoce do trabalho em equipes, entre outros é manifestação dessa objetividade latente nos estudantes. Seria função do professor lidar com essa “ansiedade” do grupo. Num contexto tradicional, isto seria mais fácil, pois de maneira geral, o ritmo das atividades pode ser ditado pelo professor. No entanto, o professor em questão teve dificuldade em dissuadir o grupo a se enveredar precocemente na busca de solução ao problema. Como a IIR repousa integralmente na idéia de que não há soluções prévias à situação-problema e tudo decorre de decisões do próprio grupo, a escolha dos assuntos a serem abordados, a sua extensão e profundidade, está fora do controle do professor. A forma final da representação interdisciplinar, incluindo as áreas e abordagens privilegiadas, foram fruto das decisões tiradas ao longo do projeto.

        Foi interessante constatar que não houve a definição de uma “equipe Física” dentre as seis propostas pelo grupo. Esse fato chama a atenção, pois um dos temores era de que o exercício se tornasse por demais  “físico” como ocorrera em tentativa anterior. A não existência de uma equipe de Física como especialidade a ser consultada, permite a inferência de duas explicações, não mutuamente excludentes: (1) a situação-problema escolhida foi capaz de sensibilizar o grupo para a necessidade de uma discussão mais ampla do que aquela possível de ser feita dentro dos  limites disciplinares da Física; (2)  os alunos já tendo domínio do campo de conhecimento da Física, não julgaram necessário definir uma equipe específica para tratar dos assuntos relativos a este campo disciplinar. No momento da avaliação do trabalho, lançamos estes comentários ao grupo que, tomando consciência da opção realizada, ratificou as duas explicações.

        A tendência do grupo em desenvolver o projeto num “tom” multidisciplinar acabou por limitar a exploração do conteúdo físico. Por um lado, esse resultado é animador e coerente com a proposta original, pois mostrou que é possível a elaboração de momentos multidisciplinares dentro de uma formação eminentemente disciplinar como é aquela do curso de graduação em Física. Por outro lado é preciso avaliar de que forma a timidez do conteúdo disciplinar apresentada neste exercício seria recebida no Ensino Médio. É difícil negar que, mesmo consciente das características interdisciplinares da atividade proposta, um professor de Física (ou Química, ou Biologia, ou Matemática) tem expectativa que sua disciplina seja privilegiada no desenvolvimento de uma atividade. Eles têm um programa a cumprir e mesmo possibilitando a introdução de práticas menos tradicionais, é razoável admitir que ele espere um mínimo engajamento dos alunos na abordagem de conteúdos de sua disciplina curricular. Por parte dos alunos deve acontecer o mesmo. Pois mesmo prevenidos, tende a ser difícil a um estudante do Ensino Médio se desprender da imagem disciplinar que o professor-coordenador passará ao projeto.

        Chamamos a atenção para este ponto, pois é necessário que os futuros professores estejam conscientes dos riscos presentes na aplicação deste tipo de projeto. É difícil prever quais os assuntos disciplinares possíveis de serem abordados numa IIR, pois sua execução depende do desenvolvimento interno do projeto que, por sua vez, depende de decisões tomadas pelo grupo. No entanto, parece-nos que a definição da situação-problema permite delinear de maneira aproximada os conhecimentos com maior chance de serem abordados. Uma vez apresentada à situação-problema e iniciado o projeto, re-orientações são difíceis de serem implementadas. Para fazer frente a estas dificuldades o Professor, ao planejar a situação-problema, deve construir um esquema em torno da mesma, imaginando os possíveis caminhos, tópicos e conteúdos que possam ser levantados ao longo do exercício. Dessa forma, poderá interferir de forma a valorizar aspectos disciplinares, seja da sua ou de outra disciplina. A pequena possibilidade de ação que o professor dispõem neste tipo de atividade reforça a necessidade de que a situação-problema proposta seja preparada com cuidado. A proposição original de Fourez sugere apenas que a proposição da situação-problema deva ser clara para os alunos. Entretanto, a partir da execução destes exercícios alertamos que a elaboração da situação deve ser cuidadosamente planejada pelo professor em uma etapa que antecede sua proposição à turma. Esta seria a etapa zero, realizada pelo professor com objetivo de encontrar uma situação-problema motivadora, abrangente e adaptada ao tempo disponível e ao contexto da classe.

        É nesta etapa também que se prevê o tipo de produto a ser obtido no projeto. Ele pode ser um texto explicativo, uma "cartilha", lista de prescrições, etc. A forma como a resposta deve ser oferecida ao final do trabalho, auxilia a tomada de decisões do grupo ao longo do exercício, evitando desvios ou discussões inócuas. Nesse caso particular, o exercício da IIR, com alunos universitários com alguma vivência profissional, o planejamento da situação-problema e do cronograma para sua realização foi extremamente importante, pois outras atividades (escolares e profissionais) tendem, por vezes, a se sobreporem ao compromisso assumido com o projeto.

        Existe uma dicotomia a ser enfrentada na concepção deste tipo de atividade, inspirada na metodologia de projetos. Por um lado, situações-problema verdadeiras dão ao desenvolvimento do projeto uma conotação “real” e prática, e isto é recebido pelos estudantes de forma positiva. Em geral a escola é vista como fonte de conhecimentos e atividades descoladas da realidade e sem utilidade prática. A execução de projetos com vocação “realista” se coloca como antídoto a este vício escolar. No entanto, tais projetos são de difícil execução, tanto por parte dos alunos como por parte dos professores. Com, isto a chance de fracasso aumenta em proporção direta com o nível de realidade. As situações-problema, formuladas com cuidado para evitarem um grau muito grande de dificuldade e se enquadrarem dentro dos limites do contexto escolar ao qual se destinam, têm maior chance de sucesso. Isto lhes confere um caráter “artificial” como foi o caso deste exercício.

        No exercício avaliado, percebemos que foi importante a forma como a situação-problema foi proposta. Apesar de carregar uma dose de humor, ela não deixou de ser desafiadora, abrangente e de ter  suscitado a obtenção de um produto, manifestado no rigor e formalismo com que foi encenada a apresentação da resposta ao problema tratada para a fictícia comissão da empresa BWI,

        A produção desse contexto problemático deve ser caracterizado através de alguns atributos, de tal que maneira que ele seja:

1 –percebido pelos alunos como um problema
2- adaptado ao nível de conhecimento dos alunos
3- suficientemente instigador para que os alunos sintam necessiade de abordá-lo
4 –executável no intervalo de tempo disponível
5- passível de abordagens multidisciplinares
6- percebido com alguma importância extra-classe

        Nos referimos a esse contexto como problema com legitimidade pedagógica (PLP), no sentido de ser um problema que tem significado no contexto de ensino e possibilidade de gerar aprendizagem.

        A  boa definição da situação-problema ajuda, mas não garante êxito no desenvolvimento do projeto.  Parece-nos necessário que em determinados momentos o  professor exerça uma certa influência no grupo, induzindo decisões em momentos cruciais. Apesar do risco de frustar parte dos objetivos básicos da atividade (a autonomia do indivíduo e sua capacidade em tomar decisões), a indução do coordenador aumenta a chance da atividade se compatibilizar  ao contexto escolar, fortemente disciplinar.  A boa execução do projeto depende da capacidade do professor de negociar as relações entre os objetivos do projeto e aqueles da sua disciplina específica. Desta forma, o professor deve ter consciência da dupla função nesse tipo de atividade e nos dois papeis a serem desempenhados: na definição do problema com legitimidade pedagógica e na negociação no desenvolvimento nas etapas do  projeto.

        A elaboração deste projeto possibilitou avaliar uma alternativa interdisciplinar dentro do contexto disciplinar dos professores. O exercício teve o mérito de mostrar a viabilidade da reflexão sobre problemas com conotação “real”. Nesta direção, julgamos importante as reflexões e as discussões que possam ser suscitadas por meio do desenvolvimento de atividades como esta aqui apresentada, pois elas possibilitam que os licenciandos entrem em contato com uma possibilidade de atuação em sala de aula, já avaliando o alcance e as dificuldades que um trabalho desta natureza.

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ZYLBERSTAJN, A., “Resolução de Problemas, uma perspectiva Kuhniana”, Atas eletrõnicas do VI Encontro de Pesquisa em Ensino de Física, Florianópolis, 1998.

Agradecimentos

       Queremos registrar nossos agradecimentos à turma de licenciandos em Física que cursou Instrumentação B conosco no segundo semestre de 2000 e se prontificou a participar do exercício. A participação, o empenho e o entusiasmo dos alunos foram fundamentais para o sucesso desse ensaio didático.

       Agradecemos também à Fabiane Aparecida de Souza Soares da Silva pela disponibilização das transcrições de entrevistas dos estudantes, utilizadas como material para a elaboração de sua dissertação de mestrado.

ANEXO 1

Escritório Brasileiro – Brasilia – DF - Brasil

Brasília, 28 de agosto de 2000.
Ilmo. Sr. Prof. José de Pinho Alves Filho e Equipe.
Depto de Física – UFSC
Florianópolis/SC - BRASIL

Senhor Professor e Equipe:
Sabedores quer o Senhor e sua Equipe executam estudos analíticos nos mais diferentes ramos científicos e tecnológicos, vimos pelo presente expor e, ao mesmo tempo, solicitar a prestimosa ajuda dessa Equipe no tocante ao que segue:
Nossa Companhia se firmou no cenário comercial da América Latina na distribuição de aparelhos eletrodomésticos fabricados pelos mais diferentes fornecedores. Particularmente, nossa Companhia representa e distribui chuveiros elétricos para os todos os países latino americanos somente de fabricação brasileira.
Isto posto, cabe-nos registrar que nos últimos anos temos recebido inúmeras queixas de consumidores, particularmente da Bolívia, denunciando problemas com os chuveiros elétricos por nós vendidos naquele país. A predominância das queixas se referem aos "choques elétricos", isto é, ao tomar um banho quente os usuários tem recebido descargas (choques) das mais variadas intensidades registrando, inclusive, casos de óbitos.
Podemos adiantar que nossos registros não se reportam a uma região específica, mas em toda a Bolívia o que, de certa forma, elimina variáveis localizadas. Por outro lado checamos os diferentes Manuais de Instruções e, salvo equívocos, não localizamos erros nos mesmos. Reafirmamos que as descargas referem-se desde as mais amenas (tipo arrepiar pelos) até aquelas mais intensas que resultaram na morte de cerca de 50 pessoas.
Frente ao exposto, vimos solicitar a sua renomada Equipe um estudo que abranja as mais diferentes causas que possam estar provocando estas denúncias em razão da reunião semestral da OMC (Organização Mundial do Comércio) a ser realizada no próximo mês de outubro. Consta da pauta a apreciação e julgamento das referidas denuncias. A decisão da plenária poderá levar ao possível descredenciamento de nossa Companhia para atuar na América Latina, salvo se as causas forem detectadas e justificadas na plenária da OMC.
Dessa forma solicitaríamos a V. Sa. e sua Equipe, um relatório a ser exposto a nossa Comissão de Auditoria Científica e Tecnológica ao final de setembro em seu Departamento.
Certos de contarmos com o empenho total, ficamos no aguardo de sua manifestação.
Atenciosamente,
 

Alessandro Faraday                                                 Maxwell Thomson
Diretores Presidentes da
BWI

 Anexo 2

ETAPA 1 - CLICHÊ
1- Encanamento construído de material condutor.
2- Excluído  ( o solo não tem condutividade para aterramento).
3- Verificar como é feita a instalação elétrica nas casas.
4- Mudanças da chave de temperatura durante o banho sem desligar o chuveiro.
5- Verificar a fonte de água.
6- Verificar as substâncias usadas no tratamento da água.
7- Verificar se os acidentes ocorrem quando a água é tratada.
8- Verificar se as pessoas são mais susceptíveis ao choque (genotipo, etnias).
9- Variações da tensão fora das especificações da empresa.
10- Características atmosféricas ( umidade, muita condutividade).
11- Rever o manual (erro de tradução, erro de interpretação).
12- Instalação (quem instala, como instala ), aspectos culturais.
13- A altitude da Bolívia ( pressão atmosférica) pode influenciar a abertura do diafragma.
14- Excluído ( ver qual o fabricante e o lote)
15- Teste da bolha de ar.
16- Excluído (será que esta acontecendo só com chuveiros ).
17- Qual o material usado no aterramento.
18- Qualidade da fiação.
19- Excluído ( sabotagem ).
20- Excluído ( transporte ).
21- Excluído (será que estas pessoas já não tinham problemas cardíacos ).
22- Excluído (material utilizado no revestimento do piso do banheiro).
23- Excluído (verificar a altura do chuveiro para ver se as pessoas não batiam nele).
24- Saber a faixa etária e a faixa de renda da população que sofre os choques.
25- Limitação do disjuntor ou defeito.
26- Fadiga do material.
27- Muitas pessoas tomando banhos demorados.
28- Conhecer as normas técnicas da ABNT, brasileira e boliviana.
29- Se os moradores colocam produtos químicos nas caixas de água para não congelar.
30-  Elementos geográficos.
31- Carcaça do chuveiro de metal.
32- Torneiras de metal.
33- Resistência não original (recondicionada).
34- Saber se a tensão é 220V ou 110V.
35- Se no momento do rompimento do resistor, a corrente pode passar pela água (minerais).
36- Se a resistividade é adequada para a região.
37-  A influencia dos cosméticos (PH) na pele

[1] Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentado no 3o. ENPEC – Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências. Atas Eletrônica. Atibaia. SP. 2001. (volta para o texto)
[2] Os Parâmetros Curriculares Nacionais consolidam essa tendência mundial, a nível nacional. (Brasil, 1999 ) (volta para o texto)
[3] Grifo nosso. (volta para o texto)
[4] Posteriormente, Kuhn se refiriu aos guias que regulam o funcinamento das comunidades de pesquisa como matriz conceitual (Kuhn, 1995, posfácio)  (volta para o texto)
[5] O livro de Atas do projeto será descrito no próximo item. (volta para o texto)
[6] Sobre os limites do conhecimento e as caixas pretas ver Bunge 1974. (volta para o texto)
[7] Maiores discussões e exemplos sobre as etapas de construção de uma ilha de racionalidade podem ser encontrados em Fourez(1994), Pietrocola et al.(2000) e Pinheiro et al.(2000) (volta para o texto)
[8] A aplicação foi feita no segundo semestre de 2000. (volta para o texto)
[9] O título do projeto anterior era: “iluminação: natural ou artificial?” (volta para o texto)
[10] Um problema verdadeiro segundo Polya (1980) afirma que “resolver um problema consiste em encontrar um caminho ali, onde previamente não se conhecia tal, encontrar uma saída para uma situação difícil, para vencer um obstáculo, para alcançar um objetivo desejado que não pode ser imediatamente alcançado por meios adequados”(volta para o texto)
[11] Os nomes do signátários era uma mistura de nomes e sobre-nomes de físicos famosos. (ver anexo 1). O fato dos alunos terem acreditado no teor da carta foi declarado pelos alunos nas entrevistas. (volta para o texto)
[12] Pietrocola et all, 2000. (volta para o texto)
[13]   A partir das Atas, quinta reunião.(volta para o texto)
[14]  Atas, Sexta reunião. (volta para o texto)
[15] Há um certo pré-conceito manifestado na afirmação que a baixa renda induziria a população a não-recorrer aos técnicos especializados. Nos países ricos, como os europeus, os serviço técnicos são muito mais caros, e grande parte da população realiza atividades de pintura, eletricidade, encamento etc por conta própria. (volta para o texto)
[16] As entrevistas foram feitas como forma de obtenção de dados para uma dissertação de mestrado. Ver Silva, 2002. (volta para o texto)

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